Setentinha

E  Chico Buarque chega aos 70 anos.
Parece estar bem de saúde, largou o cigarro e vem adotando hábitos saudáveis.
Difícil decifrar o mistério do seu talento. Não pode, se formos rigorosos, ser considerado um músico. Mal consegue se acompanhar ao violão e nunca teve paciência para estudar as escalas e exercícios que seu amigo violonista e parceiro, Luis Claudio Ramos, lhe sugeria. Sua voz também não é das melhores, embora talvez seja o melhor intérprete das suas canções.
De onde vem então essa extraordinária e surpreendente capacidade de divisão rítmica? Onde ele achou esse lindo encadeamento harmônico das suas melodias? Como conseguiu juntar letra e música de forma tão perfeita, a ponto de colocar a sua obra no mesmo nível de qualidade da do Tom, do Baden, do Edu Lobo?
As músicas do Chico marcaram as diversas fases da minha vida. Desde 1966, com o estouro de "A Banda", quando eu estava fazendo cursinho vestibular, até as últimas, do "cd" lançado 2 anos atrás, cada uma delas me remete a um determinado período da minha vida. Ao escutá-las lembro, com precisão, o que estava acontecendo comigo na época, onde estava morando e o que acontecia no país. É uma espécie de trilha sonora.
Poucas vezes tive oportunidade de vê-lo, pessoalmente. Lembro de 3 situações:
O show do Canecão em 1999, do qual tenho, "na minha cortiça", o ingresso e a foto que o carinha do Canecão tirou da nossa mesa, um show no Teatro Casa Grande (RJ), lá pelos idos de 1975/76 e um cruzamento fortuito, já nos anos 80, na porta do Teatro Ginástico (RJ), quando eu fui comprar, antecipadamente, ingressos para o seu musical "Ópera do Malandro".
Ele estava, então, no auge de produtividade e as músicas saiam aos borbotões. A quantidade e a qualidade das canções da "Ópera do Malandro" impressionam.
Com os filhos pequenos ou morando em outra cidade, perdi alguns grandes momentos. O show com a Bethânia no Canecão, o show solo do Canecão de 92 ou 93 e a vaia estrondosa no Maracanãzinho em 68 com a vitoriosa "Sabiá".
Chico tem parcerias com diversos compositores, entre eles, Edu Lobo, Toquinho, Vinícius, Tom, Milton Nascimento, Sivuca, Wilson das Neves e Francis Hime, mas creio que seu melhor parceiro seja ele mesmo. Em seguida vem o Francis.
Pelas letras geniais que expressavam ideias incomuns e uma vida interior imensa, para um rapaz de pouco mais de 23 anos, muitos diziam que ele teria sido, em outras vidas, um grande intelectual e um preto velho ex-escravo.
Pela facilidade com que expressa o sentimento feminino, alguns já disseram que, numa outra encarnação, ele teria sido uma mulher muito sofrida.
Bobagens à parte, eu que sou avesso a lesbianismo, considero "Mar e Lua", sua letra mais inspirada. Se tiver que escolher uma para levar para uma ilha deserta, fico com essa.



É Uma pessoa simples, sem oba oba. Uma vez, falou abertamente que não conseguiu colocar letra em algumas músicas que o Tom lhe mandou, entre elas a bela "Nuvens Douradas".
No " cd " do show do canecão em 99, tinha uma musica, "Você, você", que ele letrou para o Guinga.
Guinga é um violonista excepcional, cheio de dedos e que compõe musicas de dificil execução. Não é qualquer um que consegue tocar suas musicas e o Chico tinha dificuldades para tocar o "Você, você".  Por essa razão a suprimiu do espetáculo. Perguntado, foi sincero: "Não posso falar para o canecão esperar um pouco enquanto eu arrumo meus dedos para fazer o acorde".
Chico é muito querido pelos seus pares do meio artístico e quando o Guinga soube do problema, disse que teria ido todas as noites ao Canecão tocar para ele.
Quando ele apareceu, meados dos anos 60, pelo estilo "cronista" e pela qualidade das músicas, foi comparado a Noel Rosa. Na época que fez "Carolina", plena ditadura, comoveu o Brasil e Millor Fernandes o chamou de "a maior unanimidade viva".
Seu sucesso, na década de 60 era tamanho, que quando perguntaram ao Tom o que havia de novo por aqui, ele disse: Chico Buarque de Holanda.
Fora dos mega sucessos muito conhecidos, outra pérola é "Futuros Amantes", dos anos 90.
"futuros amantes quiçá, se amarão sem saber
 com o amor que um dia deixei prá você"




Chico tem um defeito grave. É torcedor do Fluminense!
Quando nasceu sua primeira filha, o saudoso Ciro Monteiro, grande rubro negro, mandou para a neném uma camisa do Flamengo. E isso virou música. "Ilmo Sr. Ciro.. ou receita para virar casaca de neném".
Detesto o Fluminense, mas a música e a sacada são geniais.



Ao chegar no universo da MPB, Chico estabeleu um novo paradigma, uma nova forma de fazer letra.
Eduardo Gudin fala que precisava de um letrista, mas que, na época, a maioria estava impregnada pela avalanche que o Chico provocou. Ele queria algo diferente e foi assim que conheceu o Paulo Cesar Pinheiro.
Paulinho Pinheiro, outro letrista espetacular, virtuoso, teve a sorte de ficar imune à influencia buarquiana. Começou quase na mesma época mas, pelas mãos do Baden, seguiu caminhos próprios.
Chico tem 3 filhas do seu casamento com a Marieta Severo e, para elas, compôs "As minhas meninas".
"Vão as minhas meninas
Levando destinos
Tão iluminados de sim
Passam por mim
E embaraçam as linhas
Da minha mão"




Chico foi perseguido pela ditadura militar e teve que se exilar. Quando voltou passou a ser o principal alvo dos censores. Não passava nada, a ponto dele inventar o Julinho da Adelaide, um nome fictício para driblar a censura e que deu certo durante algum tempo.
Em 73, com Ruy Guerra, fez o musical "Calabar, o elogio da traição" e quando a peça estava pronta para estrear foi proibida pela censura e quase quebra financeiramente os dois. É dessa peça o "Fado Tropical".
"oh musa do meu fado
 oh minha mãe gentil
 te deixo consternado
 no primeiro Abril ......"

O post está ficando grande, mas o que fazer? São 70 anos!!

De certa forma, Chico reproduziu aqui o que era comum nos grandes compositores americanos. Cole Porter, Gershwin, Jerome Kern e Richard Hodgers compunham para os musicais americanos. Seus maiores sucessos, os grandes "standards" americanos sairam dos musicais.
"A gota d'água", "Calabar","Ópera do Malandro", "O grande circo místico" e "Roda Viva" estão repletos de grandes canções.
Nos anos 2000 começaram a malhar o Chico. No Brasil, o sucesso é um insulto e um sucesso tão duradouro, é imperdoável.
Devido ao seu posicionamento político progressista, aos seus contatos com músicos cubanos e sua postura claramente favorável ao PT, começaram a chamá-lo de comunista. Faziam piadinhas também sobre o casamento da sua filha com o Carlinhos Brown. Apesar de já estar beirando os 60 anos e tendo desviado seus interesses para o lado da literatura, cobravam dele novas composições e não se conformaram quando ele ganhou o prêmio Jabuti de Literatura. Na verdade, eram aqueles mesmos caras que hoje querem eleger o Aécio e não se conformam de ver pretos em aeroportos ou em bancos de faculdade.
Parabéns ao Chico pelos seus 70 anos.
Um grande brasileiro, um talento imenso, um artista excepcional.

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